Submissão da Administração Pública à arbitragem

09/11/2011 14:35

A submissão de entidades da Administração Pública Direta ou Indireta à arbitragem é discutida há décadas pela doutrina e pelos tribunais nacionais, e vem ganhando maior destaque na última delas, notadamente em razão da evolução do instituto da arbitragem no cenário brasileiro e do desenvolvimento cada vez maior do Brasil como uma verdadeira sede de arbitragens domésticas e internacionais.

De uma forma geral, embora a questão tenha sido tratada com certa desconfiança em um passado não muito distante, atualmente se pode notar um posicionamento majoritário no sentido de que a Administração Pública e os entes que dela fazem parte podem, sim, eleger a arbitragem como método de resolução de conflitos de natureza econômica, isto é, aqueles que versam sobre direitos e obrigações patrimoniais disponíveis.

Nesse sentido, em linha com orientação já predominante na doutrina, decisões recentes proferidas pelo Poder Judiciário brasileiro têm admitido expressamente a participação de entidades públicas em procedimentos arbitrais. O Superior Tribunal de Justiça, mesmo tratando de casos relativos a entes da Administração Pública Indireta, estabeleceu nos últimos anos importantes entendimentos que alcançam as entidades públicas como um todo, também no sentido de que podem, sim, optar por e atuar em arbitragens.

Nesse sentido, o STJ já decidiu que: "quando os contratos celebrados pela empresa estatal versem sobre atividade econômica em sentido estrito – isto é, serviços públicos de natureza industrial ou atividade econômica de produção ou comercialização de bens, suscetíveis de produzir renda e lucro –, os direitos e as obrigações deles decorrentes serão transacionáveis, disponíveis e, portanto, sujeitos à arbitragem. (...) Por outro lado, quando as atividades desenvolvidas pela empresa estatal decorram do poder de império da Administração Pública e, consequentemente, sua consecução esteja diretamente relacionada ao interesse público primário, estarão envolvidos direitos indisponíveis e, portanto, não-sujeitos à arbitragem." (sem ênfase no original).

E foi também aproveitando a influência desse entendimento que o Estado de Minas Gerais promulgou, em janeiro último, a lei 19.477/11 que acabou sendo conhecida como 'a lei mineira de arbitragem" -, a qual dispõe sobre a adoção do juízo arbitral para a solução de litígios em que os entes da Administração Pública de Minas Gerais figurem como parte. Mais precisamente, com o escopo de regulamentar a participação do Estado de Minas Gerais e de seus entes em arbitragens, a lei mineira de arbitragem determina os procedimentos a serem respeitados pelo administrador público mineiro quando da inserção de cláusula compromissória em contratos administrativos e também quanto à sua atuação em procedimentos arbitrais.

Sob uma abordagem geral, a lei mineira de arbitragem possibilita a adoção da arbitragem pelos entes públicos quando presente a chamada "arbitrabilidade objetiva" (a possibilidade do direito discutido ser resolvido por arbitragem) e o respeito aos princípios norteadores da Administração Pública (previstos no art. 37, da Constituição Federal).

No entanto, a promulgação dessa importante lei tem recebido grande atenção, nos últimos meses, por parte da comunidade arbitralista brasileira. E isso, pois algumas de suas disposições têm sido objeto de grande discussão pelos profissionais e acadêmicos da área.

Os debates que se têm travado vão desde questões mais amplas e gerais até temas mais específicos dispostos ao longo de seu texto. Um bom exemplo do primeiro caso seria uma suposta inconstitucionalidade formal do artigo 5º da lei, que impõe requisitos para a atuação como árbitros adicionais àqueles previstos na lei Federal de arbitragem (lei 9.307/96). Cogitou-se, portanto, se não teria havido violação da competência privativa da União para legislar sobre matéria processual (art. 22, I, da Constituição Federal) ou, sob outro enfoque, não se teria extrapolado a competência suplementar estadual para legislar sobre matéria procedimental (art. 24, XI e §§ 1º e 2º, da Constituição Federal ).

Dentre outras questões, também têm sido tratadas como delicadas (não só sob o aspecto de legalidade, mas também de conveniência) as exigências previstas na lei mineira de arbitragem de que: (i) a cláusula compromissória deve ser sempre cheia (Artigo 8º) (ii) a indicação de árbitro deve recair apenas sobre brasileiros (Artigo 5º, inciso I), e (iii) os tratados internacionais ratificados pelo Brasil tenham aplicação imperativa ao procedimento arbitral (Artigo 7º).

Chegou-se a discutir, não suficiente, quais seriam as consequências do desrespeito das disposições da lei mineira de arbitragem: se poderia levar à invalidade da sentença arbitral, ou se apenas ensejaria a responsabilização do administrador público mineiro – dado o seu caráter, ao que parece, mais instrutivo ao administrador público do que restritivo de direitos aos potenciais litigantes.

Mas, mais importante, a lei mineira de arbitragem tem sido analisada ainda com maior preocupação por também trazer à tona discussão muito atual e relevante no Brasil acerca da submissão à arbitragem de entes estatais ou a eles relacionados: a exigência (ou não) de autorização específica para que possa a Administração Pública se submeter à arbitragem, em atenção ao princípio da legalidade estrita (prevista no caput do art. 37, da Constituição Federal). Ao se criar uma lei que expressamente "autoriza" a submissão do estado de Minas Gerais à arbitragem, perguntou-se se não se estaria praticamente afirmando que há, de fato, necessidade de autorização específica para toda e qualquer situação e que todos os demais Estados deveriam fazer o mesmo?

Nada obstante, a despeito da relevância dos debates travados, há que se ressaltar que, ao mesmo tempo em que existem pontos que causam alguma apreensão aos aplicadores do Direito (como ocorre com grande parte das normas mais inovadoras, é de se destacar), são também inegáveis os avanços que a promulgação da lei mineira de arbitragem traz não apenas ao instituto da arbitragem, mas também ao desenvolvimento das relações negociais e contratuais da Administração Pública com os investidores privados.

Sob esse prisma, pode-se afirmar que as disposições da lei mineira de arbitragem estão em plena conformidade com a autonomia que a lei 9.307/96 concede às partes quando da fixação do conteúdo da cláusula arbitral e que configurariam, portanto, tão somente as condições impostas pela Administração Pública Mineira para a eleição da arbitragem – ou seja, as práticas que entende o legislador devem ser adotadas para que o procedimento arbitral se mostre adequado ao interesse público primário e secundário naquele Estado.

Ainda assim, concordamos com aqueles que sustentam que melhor e mais adequado seria que o Estado de Minas Gerais tivesse manifestado esse evidente apoio à submissão de seus entes à arbitragem através de expedientes infralegais, o que evitaria grande parte das críticas acima apontadas sem deixar de atingir o seu propósito de representar uma norma "moderna e focada no interesse público".

Em síntese, a despeito das críticas que foram feitas (e que devem ocorrer mesmo, pois só assim a legislação brasileira atingirá a qualidade e tecnicidade esperada), entendemos que a lei mineira de arbitragem pode ser considerada em sua maioria benéfica, no sentido de dar maior segurança ao parceiro privado e contribuir para a disseminação de uma verdadeira cultura arbitral no setor público. É incontestável, nesse sentido, que a lei mineira de arbitragem colabora fortemente para que se encerrem as dúvidas sobre a antes alegada impossibilidade de adoção da arbitragem pela Administração Pública nacional - posição que, ressalte-se, não é de forma alguma condizente com o status atual do Brasil de jurisdição realmente favorável à arbitragem (arbitration-friendly jurisdiction).

 

 

Ricardo Dalmaso Marques

Fernanda Dias de Almeida

 

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